Evolução Contemporânea das Nosologias dos Estados Depressivos

Autores
Everton Botelho Sougey
Professor Adjunto do Departamento de Neuropsiquiatria da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Tárcio Fábio Ramos de Carvalho
Pós-Graduando do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Instituição: Departamento de Neuropsiquiatria da Universidade Federal de Pernambuco.

Resumo
Os autores realizaram uma revisão sobre a evolução dos sistemas de classificação dos estados depressivos. Partindo do final dos anos cinqüenta, momento em que a comunidade cientifica constatava a baixa confiabilidade do diagnóstico psiquiátrico, os autores sistematizam cronologicamente três linhas de pesquisas contemporâneas que nasceram do movimento de busca de consenso diagnóstico entre os profissionais de Saúde Mental. Trata-se da abordagem sindrômica quantitativa, do diagnóstico computadorizado e das nosologias baseadas em critérios operacionais para o diagnóstico.
Summary
The authors made a revision regarding the classification systems of the depressive states. They begining at the end of years fifty, just when the cientific community found the low confiability of the psychiatric diagnosis. This work dicuss the cronologic evolution of the psychiatric diagnosis in three ways: the syndromic quantitative approach, the computerized diagnosis and the problem of the classification systems with operational criteria for the diagnosis. This points reflect the Mental Health community effort to improve the confiability of the psichiatric diagnosis.


UNITERMOS: Depressão, sistemas de classificação, diagnóstico psiquiátrico.
UNITERMS: Depression, classification systems, psychiatric diagnosis

Introdução

A nosologia das depressões no período pós-kraepeliniano foi gradativamente se caracterizando por uma proliferação de classificações que, na prática, refletiam as divergências de concepções teóricas sobre os estados depressivos entre diferentes autores e escolas. As controvérsias giravam em torno da unidade, dualidade ou pluralidade desses distúrbios, assim como dos seus limites e diferenças entre as neuroses e os distúrbios de personalidade. Esse fenômeno também acontecia com outras categorias nosológicas e caracterizou um período de crise do diagnóstico psiquiátrico que antecedeu o início dos anos 60, ganhando posteriormente grande repercussão tanto a nível da comunidade científica quanto do grande público.
O predomínio da doutrina psicanalítica, particularmente nos Estados Unidos, contribuiu para uma certa negligência do diagnóstico e ao desenvolvimento de posições antinosológicas. Menninger(1), por exemplo, afirmou que “a classificação de pacientes psiquiátricos é desnecessária e não científica…” e que “todas as doenças mentais são essencialmente iguais só diferindo quanto ao seu grau e forma”. Os adeptos dessa visão, não aceitavam o modelo médico na abordagem dos distúrbios psiquiátricos e conseqüentemente não viam o diagnóstico como uma prática necessária. A posição antinosológica e as divergências diagnósticas produziram conseqüências nefastas tanto para a prática clínica(2), quanto para a pesquisa(3) e a epidemiologia(4). A ausência de um acordo satisfatório entre os psiquiatras em relação ao diagnóstico levou a um questionamento da credibilidade da Psiquiatria(5).
Inúmeras variáveis têm sido identificadas como fontes de discordâncias diagnósticas entre psiquiatras. Assim, para Spitzer e col.(6) o desacordo pode ser condicionado por cinco tipos principais de variação, relativas:
ao paciente;
à ocasião;
à informação;
à observação;
aos critérios de diagnósticos.
Caetano(7) dividiu as causas de baixa confiabilidade do diagnóstico psiquiátrico em dois grupos: no primeiro ele relacionou aquelas atribuídas às características do psiquiatra (concepções teóricas, experiência profissional, influências interpessoais e classe social) e no segundo grupo foram identificadas as causas que dizem respeito ao processo diagnóstico (técnica de entrevista, percepção da patologia, importância atribuída ao sintoma e o sistema de classificação utilizado).
Em 1971, por ocasião de um simpósio sobre o diagnóstico em Psiquiatria durante o X Congresso de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Brasil, Loreto(8) afirmou: “a grande deficiência da maior parte das nosologias psiquiátricas vigentes é sem dúvida, sua fundamentação em critérios mistos, ao mesmo tempo sindrômicos e etiopatogênicos. Desde que, numa parcela ponderável de casos, a valorização do fator etiológico depende muito mais da posição doutrinária do médico do que de alguma evidência retirada do exame clínico, essa mistura de critérios fatalmente impossibilita uma rotulação uniforme e coerente dos mesmos. Daí a necessidade de, se tentar primeiramente atingir um consenso amplo em torno de categorias puramente sindrômicas”.
Tentando sistematizar a evolução do conhecimento no campo da nosologia dos estados depressivos nos últimos trinta anos, são descritas cronologicamente neste artigo, três linhas de pesquisas contemporâneas que nasceram desse movimento de busca de consenso diagnóstico entre psiquiatras; trata-se da abordagem sindrômica quantitativa, do diagnóstico computadorizado e das nosologias baseadas em critérios operacionais para o diagnóstico.


Abordagem Sindrômica Quantitativa

A abordagem sindrômica quantitativa empregada com fins de melhorar a confiabilidade do diagnóstico, parte do princípio de que na Psiquiatria, somente o grupo relativamente restrito das doenças orgânicas, pode ser classificado tendo por base o agente etiológico. Assim, considera bem mais pragmática a tentativa de estabelecer classificações puramente sindrômicas.
Classificações sindrômicas podem ser estabelecidas identificando-se perfis sintomáticos distintos que apareçam com maior freqüência numa determinada população de pacientes. Ao considerar uma população heterogênea, onde cada indivíduo seja definido por uma série de variáveis quantificáveis, torna-se possível pesquisar nesta amostra a existência de subgrupos, cujas variáveis (sintomas) estejam relacionados entre si. Em termos médicos isto representa a identificação de constelações sindrômicas significativas.
O desenvolvimento dessa linha de pesquisa se baseia na abordagem dos sintomas psíquicos como variáveis quantitativas, visando o tratamento desses dados através de procedimentos estatísticos. Constitui portanto, objeto da chamada psicopatologia quantitativa.
A aplicação de métodos quantitativos em Psiquiatria é antiga. O primeiro estudo utilizando uma técnica estatística multivariada (análise fatorial) na área psiquiátrica foi o de Moore em 1930(9). Este autor, avaliou através de uma lista de 41 sintomas, as observações clínicas de 367 pacientes psicóticos e após a análise fatorial, isolou dois grupos sintomáticos constituídos de “depressões lentificadas” e “depressões agitadas”.
No Brasil, o pioneiro nestes estudos foi Freitas Jr.(10) que, utilizando a mesma metodologia empregada por Moore, numa perspectiva puramente sindrômica, isolou numa população de 435 deprimidos ambulatoriais um fator considerado geral para as depressões e vários fatores específicos. Estes foram separados em dois grupos sintomáticos: “o primeiro ligado à astenia chamado hipopático e o segundo ligado à hiperemotividade, de hiperpático”.
Naquela época, as dificuldades operacionais para a execução dessas pesquisas, sobretudo nos seus aspectos matemáticos, não estimularam o desenvolvimento de outros estudos. Somente no começo dos anos 60 observa-se o ressurgir do interesse por essas pesquisas.
A abordagem quantitativa em pesquisa psiquiátrica com o objetivo de isolar constelações sindrômicas, necessita inicialmente coletar os sintomas e transformá-los em números, ou seja, codificá-los numa linguagem operacional e posteriormente proceder o tratamento estatístico dos dados colhidos. A primeira etapa (coleta e quantificação dos sintomas) é realizada através da utilização dos instrumentos de avaliação (escalas e questionários), enquanto que a segunda, se efetua através da execução de técnicas estatísticas multivariadas.
No que diz respeito ao tratamento dos dados obtidos através dos instrumentos de avaliação, as perspectivas abertas pelo emprego de computadores colocaram num primeiro plano técnicas mais recentes como a análise multivariada. Esta abordagem, permite a análise de diversas variáveis aleatórias correlacionadas para um determinado número de indivíduos. Sua teoria supõe que o conjunto de variáveis aleatórias tenham uma distribuição normal multivariada. Esta suposição é cômoda e permite uma análise multivariada baseada na distribuição normal. Portanto, esta técnica que representa o conjunto de métodos estatísticos destinados a condensar, representar e interpretar múltiplos dados para cada indivíduo é considerada o modelo mais adequado para análise da sintomatologia psiquiátrica.
Três métodos de análise multivariada têm sido freqüentemente utilizados nas pesquisas sobre a sintomatologia das depressões: A análise fatorial, a análise discriminante e a análise em agrupamento ou em “clusters”.
Comentários
Em razão de suas características exclusivamente descritivas e de sua independência em relação as considerações etiopatogênicas, a abordagem quantitativa tem sido utilizada como um modelo de pesquisa que tenta resolver problemas fundamentais das classificações psiquiátricas. A identificação de dimensões sintomáticas tem servido como um método de verificação das hipóteses clínicas da nosologia tradicional e servido como opção de comunicação entre psiquiatras de diferentes escolas e culturas.
Embora tenha havido um melhor discernimento do problema das classificações, a abordagem sindrômica quantitativa tem recebido várias críticas. Kendell(11) chegou a admitir o fracasso dos métodos multivariados na resolução dos problemas de classificação psiquiátrica. O autor alegou que, ao invés de resolver as dificuldades, pondo fim aos desacordos existentes, as análises estatísticas acentuaram os problemas pois aumentaram o número de classificações rivais. Baseado na opinião de outros autores(12)(13) e na sua própria experiência(11), Kendell(14) aborda, por exemplo, certos aspectos teóricos da análise fatorial que segundo ele, comprometem os resultados da maioria dos trabalhos que utilizaram este método. Para ele o teorema do limite central garante que a distribuição dos escores fatoriais terão sempre tendência a se aproximar de uma distribuição unimodal e se uma distribuição bimodal é obtida, não representa senão uma indicação de que os dados originais não servem para análise. O autor conclui afirmando que a álgebra da análise fatorial pressupõe que os dados originais têm uma distribuição multivariada normal e se partimos de uma hipótese de homogeneidade e obtemos em seguida dois grupos distintos, ou mais, o único procedimento justificável é rejeitar a análise como sendo inaplicável. Kendell(14) defendeu uma visão unitária na classificação dos distúrbios depressivos, ressaltando que as semelhanças subjacentes das características da síndrome depressiva evidencia a existência de um único distúrbio que difere apenas na sua expressão e intensidade. A depressão é considerada na visão do autor, como inscrita na gama de experiências humanas, como uma reação às diversas modificações pelas quais passa o organismo.
Roth(15) defendeu uma opinião oposta à de Kendell. Para ele, a divisão dos distúrbios afetivos em categorias distintas (depressão endógena/depressão neurótica) foi demonstrada por ele e por diferentes autores(16)(17) e lembra que Maxwell(12) citado por Kendell(11) é o único autor a afirmar da impossibilidade na utilização da análise fatorial para a classificação de indivíduos, o que contraria a opinião da maioria dos autores. Para Roth(15), os distúrbios afetivos têm colocado numerosos problemas diagnósticos em razão da imbricação dos sintomas que lhes caracterizam. Daí, afirma o autor a necessidade da utilização de métodos estatísticos multivariados, que têm servido para demonstrar a existência de várias categorias diagnósticas no interior do grupo “distúrbios afetivos”.
O significado dessa bimodalidade, continua um assunto controvertido, levando a escola do Hospital Maudsley, de Londres, a uma polêmica com a escola de Newcastle que dura há anos. A primeira defendendo a unimodalidade, portanto uma visão unitária ou um modelo dimensional, a segunda afirmando a bimodalidade das distribuições e portanto, a existência de categorias qualitativamente distintas.
Ao analisar a utilização da abordagem quantitativa em Psiquiatria, Pichot(18) afirma ter sido ela um avanço no conhecimento da semiologia e do diagnóstico. Contudo, admite que estes métodos, como a análise fatorial, coloca alguns problemas, como o da questão essencial sobre a natureza dos fatores isolados. “Trata-se de entidades com existência real ou não passam de artefatos matemáticos, sem valor explicativo?”, questiona ele. O autor alerta para o fato de que a quantificação não é uma panacéia na pesquisa psiquiátrica e que, o emprego dos procedimentos matemáticos tão possantes, não pode dispensar a reflexão da elaboração de hipóteses clínicas e deve representar um instrumento de verificação dessas hipóteses.
Para Versiani(19) as técnicas de análise multivariada são muito atraentes em função de seu poder, contudo muitos são os problemas do seu emprego. Para ele, “várias variáveis são categoriais e submetidas a uma quantificação forçada durante o processo para atender a requisitos de normalização, o que gera divergências entre especialistas da área”.
Para Wing e col.(20) as categorias selecionadas através de métodos estatísticos multivariados têm menos validade do que o diagnóstico clínico, mas elas possuem o mérito de constituir um procedimento preciso e determinado.
A aplicação da abordagem quantitativa com o objetivo de resolver os problemas de classificação dos distúrbios depressivos, tem representado um esforço na tentativa de melhorar a confiabilidade do diagnóstico psiquiátrico. Grupos de sintomas foram condensados, síndromes discriminadas e tipos sindrômicos identificados. Estudos desse gênero são complexos e não podem ser conceitualizados diretamente, carecem de uma nomenclatura descritiva concisa, que permita resumir as principais características de um determinado perfil. Outro aspecto importante consiste na validação da nomenclatura adotada, pois uma determinada classificação sindrômica só apresentava interesse prático, a partir do momento em que tenha significação precisa e unívoca para os especialistas. Esta última etapa tem sido pouco explorada e esta omissão pode ter sido a responsável pela pouca difusão no meio psiquiátrico, das classificações sindrômicas já estabelecidas.
Novas alternativas, como aplicação de procedimentos computadorizados para o diagnóstico, influenciaram a evolução da pesquisa, arrefecendo o desenvolvimento dos estudos multivariados, Contudo apesar dos limites e dificuldades de sua utilização, as técnicas quantitativas têm prestado importante contribuição ao problema do diagnóstico das depressões.

Diagnóstico Computadorizado
O diagnóstico é a área mais complexa de decisão médica pois depende da análise de um grande número de informações das mais variadas fontes e diferentes naturezas, como também envolve raciocínio simultâneo de processos lógicos e probabilísticos.
O estabelecimento do diagnóstico clínico é um procedimento baseado em princípios de hierarquização incorporados a regras de classificação. Quando essas regras podem ser definidas com suficiente clareza, torna-se possível a elaboração de programas computadorizados de diagnóstico. Um programa, corresponde a uma série de instruções, ordenadas logicamente para posterior processamento automático. O programa fixa, dessa forma, as operações a serem executadas, os diversos parâmetros que devem ser utilizados e as correlações de diferentes dados de acordo com o objetivo proposto(21).
Do ponto de vista lógico, as classificações psiquiátricas pertencem às chamadas classificações por conceitos (em oposição às classificações numéricas) onde cada classe é especificada por um conceito que representa o conjunto das características comuns aos elementos que as compõem e que a distinguem das outras. Essas classificações visam ser naturais, ou seja, onde os conceitos utilizados devam permitir a formulação de princípios gerais que reflitam a uniformidade do conjunto de elementos estudados e assim, fornecer uma base à explicação, predição e compreensão científicas.
Uma das aplicações clínicas da abordagem computadorizada é a de possibilitar um meio útil de decisão e estandardização diagnóstica e por conseguinte, diminuir a margem de erro na seleção de populações de pacientes. Spitzer e Endicott(22) enumeram as seguintes vantagens do diagnóstico computadorizado:
perfeita confiabilidade, pois ao utilizar os mesmos dados, produz sempre o mesmo diagnóstico;
maior capacidade de utilizar as mesmas regras explícitas em grandes e diversas populações de pacientes;
representa um avanço na compreensão das complexas relações entre os sintomas e o diagnóstico.
Uma grande variedade de técnicas têm sido usadas para projetar e implementar os sistemas de auxílio à decisão médica. Apesar de técnicas de modelo matemático, reconhecimento de padrões, e análise de grande bases de dados terem sido utilizados, os métodos mais importantes derivam da estatística Bayesiana e de um campo da ciência da informática, conhecido como Inteligência Artificial (IA), ou engenharia do conhecimento(23). Em 1959 os estudiosos reconheceram a relevância do teorema de Bayes para realizar diagnósticos médicos(24). Como os computadores eram tradicionalmente vistos como máquinas de cálculos numéricos, os pesquisadores utilizaram o computador para avaliações probabilísticas baseados nos dados dos pacientes. Muitos programas diagnósticos foram desenvolvidos nos anos seguintes e muitos deles se mostraram precisos em diferenciar certos grupos de diagnósticos(25)(26).
O método, baseado em árvore de decisão lógica, utiliza um modelo similar ao processo de diagnóstico diferencial empregado na prática clínica e portanto, não necessita de um conjunto prévio de informações(25). Esse método, utiliza Inteligência Artificial “sistemas experts” para discriminar entre várias hipóteses diagnósticas competitivas. Quando comparado com os dois métodos estatísticos (probabilidade e função discriminante), o sistema progressivo de decisão lógica mostrou um melhor desempenho em diagnosticar um grupo de pacientes. A comparação tomou como referência o diagnóstico clínico(25).
Para execução do diagnóstico psiquiátrico computadorizado é necessário definir o sistema de dados a ser utilizado, assim como o modo de sua obtenção e registro. Segundo Baro(27) esses dados devem possuir as seguintes características:
uniformidade, ou seja, ter a mesma significação para diversos avaliadores;
poder discriminante o que implica em conter uma informação que outras fontes não podem fornecer;
objetividade, caracterizada pela capacidade em fornecer o máximo de informações com o mínimo de dados.
Com o objetivo de satisfazer as exigências qualitativas e quantitativas na obtenção dos dados para o diagnóstico automático foram utilizadas entrevistas estruturadas, anteriormente desenvolvidas, cuja extensão e padronização superam as limitações, para esse uso, das escalas de avaliação e questionários.
As entrevistas estruturados ou padronizadas são instrumentos de avaliação que permitem um completo inventário da sintomatologia e de outros dados como antecedentes, evolução da doença ou circunstâncias desencadeantes, considerados importantes para o diagnóstico. Esses instrumentos nasceram da necessidade de coordenação e estandardização da linguagem descritiva dos sintomas psicopatológicos e sua utilização tem constituído um método eficaz para melhorar a confiabilidade do diagnóstico psiquiátrico. A sua construção obedece a uma seqüência padronizada de questões, assim como dos modos de registro dos dados, O comportamento do avaliador durante o exame, seu grau de flexibilidade e de interpretação das informações estão em geral reduzidos pelas regras e definições contidas no instrumento. As entrevistas estruturadas são longas e seu preenchimento requer um treinamento prévio, de modo que não se prestam a utilização clínica cotidiana, elas são normalmente utilizadas em pesquisa.
Entre as principais entrevistas estruturadas, que geraram programas computadorizados de diagnóstico psiquiátrico destacam-se o “Psychiatric Status Schedule”(28) que gerou o programa DIAGNO, o Exame do Estado Atual “Present State Examination” (PSE) que serviu de referência para o programa CATEGO e a Associação para Metodologia e Documentação em Psiquiatria “Arbeitsgemeinschaft für Methodik und Dokumentation in der Psychiatrie” (AMDP) que referenciou o programa DIASIKA.
Comentários
A abordagem quantitativa dos sintomas e síndromes psicopatológicas possibilitou o desenvolvimento de programas computadorizados de diagnósticos baseados em modelos estatísticos que, gradativamente foram substituídos pelos sistemas progressivos de decisão lógica. Este modelo, ao simular o processo normalmente utilizado pelo psiquiatra, ofereceu vantagens que asseguraram sua difusão e utilização em vários centros internacionais de pesquisas. Para Spitzer e Endicott (1974) as vantagens do programa DIAGNO e de outros do mesmo gênero incluem, também, a seleção de pacientes para estudos clínicos em psicofarmacoterapia e detecção de casos psiquiátricos na comunidade para estudos epidemiológicos.
Melrose e col.(29) comparando o programa DIAGNO II com um programa baseado no modelo estatístico de funções discriminantes, relataram a superioridade do sistema progressivo de decisão lógica para a maioria das categorias do DSM-II. Klein e Davis(30) encontraram eficácia equivalente entre esses dois tipos de programas.
Schimid(31) realizou um estudo comparativo do índice de concordância entre os programas CATEGO, DIASIKA e o diagnóstico clínico cujos resultados indicaram um melhor desempenho do programa DIASIKA. Resultados semelhantes, obteve Pichot(32) com a experimentação da versão francesa do programa DIASIKA, destacando, inclusive resultados nitidamente superiores para a categoria das depressões.
Os programas computadorizados de diagnóstico introduziram um alto nível de padronização das regras diagnósticas e representaram uma etapa importante na evolução da pesquisa nosológica em Psiquiatria. Contudo, apesar das contribuições dessa abordagem, algumas dificuldades de ordem prática têm provocado resistências. A obrigatoriedade de respeitar um plano rígido para o exame do paciente e a necessidade de codificar os dados limitando-os a um referencial para a entrada do computador representa um procedimento distante do processo habitual, flexível e sutil do exame clínico. Várias críticas nesse sentido têm destacado o fato de que o diagnóstico clínico não resume apenas a uma combinação matemática lógica entre sinais, sintomas e premissas teóricas.
Crocq e col.(33) reconhecem que a intrusão de uma norma automática para interpretação dos fatos e de uma lógica anônima para decisões diagnósticas e terapêuticas constitui uma inovação insuportável em Medicina, pois, recoloca em questão sua própria concepção liberal, individual e humanista.
Para Leme Lopes(34) “o uso do computador é útil toda vez que se trabalha com grandes números e se deseja registrá-los numa memória, de modo a formar um acervo clínico, que poderá ser usado para muitos fins”, e enfatiza em que “o diagnóstico individual se executa melhor pela entrevista padronizada e exame mental tradicional”. Esta opinião é também expressa por Endicott(35) ao registrar o melhor desempenho do diagnóstico realizado por psiquiatras experientes, em relação aqueles formulados por computadores. Para ela, os programas automáticos são bastante confiáveis mas, possuem uma grande rigidez não conseguindo se equiparar à flexibilidade do diagnóstico realizado pelo psiquiatra.
Essas constatações levaram os pesquisadores a desenvolver uma metodologia clínica para o diagnóstico psiquiátrico que evitasse a rigidez do modelo automático, mas que conservasse sua confiabilidade. Essa sistematização deu margem ao desenvolvimento de um modelo baseado na exigência da utilização de critérios clínicos operacionais de inclusão e exclusão para cada categoria diagnóstica, surgindo desse modo, o atual estágio de evolução da nosologia psiquiátrica. Diversos sistemas diagnósticos computadorizados foram assim desenvolvidos. No Brasil temos, por exemplo, a LIST-D10(36). Trata-se um sistema de multidiagnóstico computadorizado para os distúrbios depressivos que permite avaliar o paciente com o auxílio de um computador e fornece o diagnóstico em até 10 diferentes sistemas de classificação para os distúrbios depressivos. Foi desenvolvido a partir da LICET-D10(37) e roda no ambiente Windows da Microsoft, o que torna sua operação mais fácil que outros sistemas computadorizados. Além disso, a avaliação é rápida pois o sistema incorpora pulos e pontos de corte automáticos.

Critérios Operacionais para o Diagnóstico
Esta abordagem está baseada na idéia de desenvolver definições operacionais para as várias categorias nosológicas. Trata-se da escolha de critérios sintomatológicos, evolutivos e demográficos definidos para cada categoria que explicitam as regras de classificação. Os critérios para o diagnóstico psiquiátrico indicam de maneira objetiva as características que um paciente deve ou não apresentar para ser considerado como pertencente a uma determinada categoria. Dessa forma, diferentes psiquiatras, ao realizarem o diagnóstico, têm maior probabilidade de concordância.
A seleção de critérios operacionais para o diagnóstico psiquiátrico provém, tanto das descrições clínicas realizadas pelos autores antigos, quanto dos resultados de vários estudos empíricos. No conjunto esses critérios são considerados possuidores das seguintes características:
incluem sintomas de definição precisa, o que diminui as divergências entre psiquiatras;
possuem elementos discriminativos, o que permite diferenciar uma categoria das outras;
são reconhecidos como bastante restritivos;
têm o objetivo essencial de obter grupos homogêneos de pacientes.
Segundo Kendell(38), a sugestão de que se deveriam desenvolver definições operacionais para as várias categorias diagnósticas da nosologia psiquiátrica foi feita pelo filósofo Hempel, no princípio da década de sessenta. Em 1965, na Inglaterra, Carney e col.(39) desenvolveram o primeiro instrumento de diagnóstico baseado nos procedimentos de critérios operacionais; A Escala de Diagnóstico de Newcastle, que permite diferenciar as depressões endógenas das neuróticas. Todavia, apesar de implicar na exigência de critérios, a Escala de Diagnóstico de Newcastle foi construída com o objetivo específico de validar a clássica dicotomia depressão endógena/neurótica, baseando-se na utilização de técnicas estatísticas multivariadas.
Foi nos Estados Unidos, que a noção de critérios para o diagnóstico veio a ser efetivamente desenvolvida e rapidamente difundida entre a comunidade científica psiquiátrica de todo o mundo. No início dos anos setenta, o trabalho do grupo de pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Washington levou à publicação dos “Diagnostic Criteria For Use in Psychiatric Research”, também conhecidos como “critérios da Escola de Saint-Louis” ou de Feighner(40). Tratam-se de critérios destinados ao diagnóstico de quinze categorias de distúrbios psiquiátricos criados com o objetivo de permitir a identificação de grupos homogêneos de pacientes para a pesquisa.
A partir da publicação dos critérios de Feighner, vários outros autores, tanto nos Estados Unidos, quanto na Europa desenvolveram sistemas de classificação baseados nas exigências de critérios de inclusão e exclusão para o diagnóstico. O surgimento desses sistemas e sua influência no âmbito da pesquisa marca uma etapa capital no desenvolvimento da nosologia psiquiátrica atual.
Comentários
Os sistemas contendo os critérios operacionais de inclusão e exclusão resultaram de um longo esforço de pesquisa que tem procurado otimizar o diagnóstico psiquiátrico reduzindo as controvérsias resultantes de adesões de diferentes escolas à modelos classificatórios baseados, na sua maioria em paradigmas etiopatogênicos.
Com a publicação da terceira edição do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais da Associação Americana de Psiquiatria(41), a abordagem baseada na utilização de critérios para o diagnóstico passou a integrar um conjunto de modificações da nosologia psiquiátrica que têm sido comparadas, em perspectiva histórica, à sistemática Kraepeliniana de 1896 que delimitou o essencial dos quadros conceituais da Psiquiatria(42). Se antes os critérios de inclusão e exclusão eram apenas utilizados em pesquisa, a partir do DSM-III passaram, também, a ter aplicação clínica.
Segundo Loreto(43) “a necessidade de se tentar primeiramente atingir um consenso amplo em torno de categorias puramente sindrômicas foi dado com o DSM-III. Para ele, ao adotar deliberadamente uma posição ateórica em relação aos problemas etiológicos o DSM-III pode ser utilizado por clínicos de várias orientações doutrinárias e essa busca de uma linguagem comum é de grande importância para o progresso da especialidade. Essa posição “ateórica” e “empirista” é criticada por Faust e Miner(44) que, apesar de reconhecerem a importância da descrição como etapa do desenvolvimento da ciência, atribuem ao DSM-III, uma posição metodológica extremista constituindo um verdadeiro “empirismo primitivo” decorrente de uma visão Baconiana da ciência.
Ao instituir o empirismo clínico-descritivo, a abordagem baseada na exigência de critérios para o diagnóstico passou a exercer uma marcante influência na concepção nosológica mundial. No Brasil, apesar dos esforços para uniformização e introdução de instrumentos e critérios para o diagnóstico(45)(19), sua maior discussão e divulgação somente viria acontecer a partir de 1985(46).
É sabido que a utilização de critérios considerados restritivos exclui do diagnóstico um número significativo de pacientes “falsos positivos”. Esta discriminação necessária, sobretudo em pesquisa, visa selecionar grupos mais homogêneos de pacientes. Neste sentido, uma população de deprimidos que preencha simultaneamente os critérios dos distúrbios depressivos “maiores” dos sistemas aqui descritos (grupo concordante), está hipoteticamente mais próxima de representar o consenso sobre a definição do fenômeno depressão .
Apesar da inegável contribuição e os avanços com a utilização dos critérios operacionais para o diagnóstico é necessário enfatizar que a maior parte dessas definições integrantes da maioria dos sistemas está baseada em conhecimentos ainda limitados, necessitando de mais estudos para validação. Nos últimos anos, o desenvolvimento de instrumentos de aproximação multidiagnóstica tem favorecido a comparação simultânea dos diferentes critérios propostos nos vários sistemas de classificação existentes. Aplicados ao estudo dos distúrbios depressivos estes instrumentos contribuirão para o avanço do conhecimento psiquiátrico que no seu estágio atual é muito mais de investigação do que de certezas.


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Sobre Dr. Tarcio Carvalho

Médico-psiquiatra, doutor em Saúde Mental pela UNICAMP
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